A internet é cada vez mais paradoxal: tudo aquilo que tem de bom, tem em doses semelhantes de mau. Arrisco-me a dizer que se a internet fosse uma pessoa, provavelmente seria bipolar.

Afinal a internet é, simultaneamente, uma porta aberta para a informação – nunca como hoje houve tanta, nem foi tão fácil aceder a ela – mas também para a desinformação (quem nunca ouviu falar em fake news?). 

É também um canal da democracia, porque dá voz a toda a gente e tem um enorme potencial de alcance, mas curiosamente é também isso que a torna incrivelmente perigosa, sendo através das suas potencialidades que cada vez mais crescem os movimentos antidemocráticos.

E tem sido, sem dúvida, uma porta aberta para o nascimento de novas formas de relacionamento, permitindo ‘encurtar distâncias’ (ou evitar percorrê-las), através do uso de plataformas digitais – seja Skype, Zoom ou Tinder – mas também para o aparecimento e crescimento de novas formas de violência e abuso. 

Assim, na internet, há quase sempre duas faces da mesma moeda: um dos grandes desafios passa, cada vez mais, por saber distingui-las. E se há problema que ilustra este desafio, ele chama-se Cyberbullying. 

Cyberbullying: a qualquer hora, em qualquer lugar

Tal como o nome indica, e ao contrário do que acontece no bullying, no cyberbullying não há a necessidade do encontro físico com o outro.  Este assédio ou abuso pode ser feito a qualquer hora e local do planeta, com acesso à internet e a um simples smartphone, computador ou tablet. 

Assim, o cyberbully utiliza a internet como meio para atingir um fim, que pode ir desde a ameaça de partilha de fotos íntimas a troco de dinheiro, à criação de perfis falsos com o nome da vítima com o mero objetivo de a insultar e humilhar nas redes sociais ou à partilha de imagens íntimas em vários chats de diferentes redes sociais, muitas vezes apenas por “diversão, vingança ou necessidade de afirmação”, como confessaram vários jovens num estudo realizado pelo ISCTE durante os meses iniciais de confinamento da pandemia. 

Apesar deste ser um fenómeno difícil de medir, devido às características de cibersegurança inerentes à internet, há já algum estudos que demonstram a dimensão do problema: num estudo, realizado em 2017, pela UNICEF a jovens de 30 países diferentes, 1 em cada 3 jovens confessaram ser vítimas de bullying online e 1 em cada 5 deixaram mesmo de ir às escola por causa disso. E a tendência parece ser de crescimento, com Portugal a não fugir à regra: dados de um estudo publicado em 2014 pela EU Kids Online – plataforma financiada pela União Europeia para a investigação das práticas de utilização da Internet – em parceria com o projeto Net Children Go Mobile, demonstram que o Cyberbullying está a crescer, incluindo em Portugal, onde se verificou um aumento de casos dos 8 para os 12% entre 2010 e 2014. 

Apesar da dimensão do problema, muitos jovens que são vítimas de Cyberbullying não têm consciência das agressões de que estão a ser alvo, desvalorizando-as ou pensando tratar-se de algo temporário. A verdade é que dificilmente há um esquecimento assim tão imediato daquilo que é partilhado no mundo digital, uma vez que a internet tem esta particularidade de guardar os registos de tudo o que nela acontece. Assim, tal como na internet nada desaparece, também as marcas do cyberbullying não desaparecem de um dia para o outro, criando-se feridas enormes, que estão constantemente expostas (literalmente, basta irem às redes sociais), podendo até nunca sarar e, nos casos mais extremos, levar mesmo ao suicídio.

“O silêncio é uma forma de cumplicidade”

A frase é da investigadora do ISCTE Raquel Antunes e aponta para a necessidade da comunidade envolvente – desde os pais, colegas de escola, amigos ou até mesmo desconhecidos – denunciar as situações de abuso a que assiste, algo que ainda fica muitas vezes por fazer. O estudo do ISCTE “Cyberbullying em Portugal durante a Pandemia do Covid 19” do qual a investigadora fez parte, mostra que apenas metade daqueles que assistem ou têm conhecimento de situações de cyberbullying, agem para impedir a continuidade dos mesmos. 

Neste sentido, é necessário educar quem assiste sobre como intervir, de forma a contribuir para solucionar o problema. É particularmente importante realçar a necessidade de apoiar a vítima e de tentar perceber qual o grau de violência de que está a ser alvo, aconselhando-a a expôr a situação a alguém de confiança (seja um amigo, pai, professor ou psicólogo). 

Este processo educacional é de uma enorme importância, não só porque, na maior parte das vezes, as vítimas  sentem-se demasiado humilhadas para conseguirem pedir ajuda, mas também porque sabem que nem sempre a solução encontrada por quem procura ajudar, é a mais indicada.  É isto que faz com que, muitas vezes, os jovens vítimas de cyberbullying acabem por não procurar a ajuda dos pais, com medo de sofrerem uma dupla penalização. Para além de sofrerem a ‘humilhação’ que o cyberbullying representa para muitas delas, sentem ainda que se contarem aos pais correm o risco que estes lhe tirem o telemóvel, um castigo que penaliza a vítima e não o agressor. 

Assim, tirar o telemóvel à vítima não é uma solução que contribua para resolver o problema, visto que os smartphones são apenas o meio que o agressor utiliza para as atacar e não o verdadeiro perpetuador da agressão. E se é verdade que, pelo menos na teoria, a vítima poderá não ver (pelo menos do seu telemóvel) o bullying de que está a ser alvo nas redes sociais, irá com certeza fantasiar sobre o que estarão a dizer sobre ela, o que poderá ter um efeito igualmente  nefasto a visualizar os verdadeiros abusos e insultos.

Por isso, é cada vez mais importante que os pais ou encarregados de educação, em conjunto com as escolas, façam o trabalho de casa, trabalhando de uma forma holística e sistémica. Não basta consciencializar os alunos para o problema, é necessário que os próprios encarregados de educação e professores,  saibam como devem abordar os filhos / alunos caso suspeitem ou descubram que estes estão a ser vítimas de cyberbullying, assim como educá-los para uma utilização segura das ferramentas digitais (para mais pormenores sobre este assunto, recomendamos que leiam este Guia da Ordem dos Psicólogos que aponta para algumas dicas práticas e preventivas que os pais devem pôr em prática).

Para quando a inclusão do Cyberbullying como tópico do programa escolar?

Como já vimos, a escola deve assumir um papel ativo e, por isso, os professores e auxiliares são peças fundamentais tanto na prevenção, como na busca de soluções para este problema. Para que isso aconteça, é necessário que, em primeiro lugar, as escolas invistam cada vez mais na formação e consciencialização dos seus docentes para este crime, de forma a permitir que estes tenham as ferramentas necessárias para identificarem o problema e agirem de acordo com as necessidades.  

Ao mesmo tempo, é também também fundamental consciencializar os alunos para esta realidade. E isto passa não só por explicar e demonstrar qual o impacto que o Cyberbullying causa nas vítimas, mas também dar-lhes as ferramentas, não só para o confronto e denúncia destes casos, mas para uma maior empatia, fazendo-lhes ver que por detrás do ecrã onde escrevem, está um ser humano, tal e qual como eles, de carne e osso e com sentimentos. 

Para que tal aconteça é importante debater esta problemática em sala de aula, com a moderação do professor, de um psicólogo e até de ONGs, que podem ser convidadas a ir às escolas falar diretamente para e com os alunos, ou através de testemunhos reais.

Também a existência de mais psicólogos nas escolas portuguesas poderá ser importante, de forma a permitir a criação de gabinetes de suporte e mediação aos alunos e às suas famílias, o que aliás aconteceu num projeto recente de uma escola portuguesa, como relatado no livro “Dependências Onlinede Ivone Patrão e Daniel Sampaio.

O maior obstáculo a estas mudanças parece continuar a ser a forma como o sistema de ensino funciona atualmente em Portugal. Como referiu a presidente do SIPE, Júlia Azevedo, ao Observador, a verdade é que os professores estão constantemente a correr atrás de cumprir o programa curricular e, muitas vezes, esquecem-se de educar para estes temas essenciais da vida em sociedade, que podem ter tanto impacto no desenvolvimento dos jovens e futuros adultos.  

Tendo em conta esta realidade, talvez o primeiro passo para que este assunto possa começar a ser abordado com regularidade nas escolas portuguesas, seja colocar o tópico do cyberbullying no plano curricular. 

Ainda assim, isto não deverá ser suficiente para resolver o problema: para tal será necessário que estas medidas sejam adotadas de forma sistémica por toda a comunidade, estando assentes numa visão multidisciplinar, de maneira a combater este fenómeno através da prevenção e invertendo a tendência de crescimento do cyberbullying. 

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