Conceito que surge desde os tempos ancestrais, brincar é a ação que os animais (racionais e não racionais) usam para se exprimir na relação consigo e com o outro, utilizando para isso ferramentas de sobrevivência através do jogo simbólico. Já na Grécia Antiga os Deuses utilizavam o jogo para se entreterem, algo que se manteve até hoje: quem da Geração Baby Boomers nunca jogou à bola na rua com 2 pedras, saltou à corda, jogou à macaca ou ao berlinde? 

No entanto, a forma como as crianças brincam tem evoluído ao longo dos tempos, eu própria o experienciei recentemente: Há uns tempos, estava em casa de uns amigos do meu namorado, quando eles sugeriram que jogássemos Monopólio. Fiquei logo entusiasmada, afinal sempre gostei de jogos de tabuleiro, principalmente de monopólio. Fazem-me recordar a minha própria adolescência e os domingos à tarde reunidos em família. Mas rapidamente esta minha recordação foi interrompida por um dos amigos do meu namorado: “Inês tens de instalar a APP do jogo no telemóvel”.

Confesso que fiquei um pouco relutante, é que para mim Monopólio sempre foi um jogo de tabuleiro e transformá-lo num jogo online não fazia qualquer sentido. Eles não percebiam a minha incredulidade: “Sim, é para instalar no telemóvel, qual é o espanto?”. Afinal, aquele era o Monopólio que conheciam e aquela é a forma como brincam muitas crianças nos dias de hoje: em frente a um ecrã e fechadas em casa. 

Sedentarismo: será esta a doença do século XXI?

Vivemos numa sociedade que passa cada vez mais tempo sentada e dentro de quatro paredes, começando cada vez mais cedo a remar contra a maré que navega no nosso ADN.  A “rua” e o brincar ao ar livre, indispensáveis para que a identidade e desenvolvimento de competências como a autonomia e resiliência das crianças se desenvolvam, são algo cada vez mais raro no dia-a-dia das nossas crianças.

Os números não enganam: de acordo com o estudo efetuado pela Skip Portugal em 2016, 7 em cada 10 crianças passam uma hora ou menos ao ar livre por dia e 1 em cada 3 apenas meia hora ou menos no exterior. Na prática, a maioria das nossas crianças passa menos tempo ao ar livre do que presidiários, o que é o mesmo que dizer que cada vez menos brincam ao ar livre. Mas como é que muitas das crianças, que no passado brincavam tanto na rua, são hoje os pais com filhos que cada vez menos o fazem?

1 – Pais cada vez mais assoberbados com trabalho 

Bem, em primeiro lugar, e ao contrário de outros países, Portugal continua a marcar passo relativamente às suas políticas públicas, com um atraso de 20/30 anos quando comparado com outros países da Europa. É o caso das políticas de trabalho, que em Portugal, devido a uma carga laboral excessiva, não permitem um balanço equilibrado entre a vida profissional e pessoal, o que leva a que a maior parte dos pais tenham de abdicar de tempo para brincar e interagir com os seus filhos.  

Portugal tarda em seguir o exemplo dos países nórdicos – por exemplo, na Suécia o horário de trabalho é de 6 horas – dando mais tempo aos pais para estarem com as crianças, o que faz com que, apesar do clima ser muito menos simpático que o português, as crianças sejam mais ativas, brinquem mais no exterior e sejam educadas para arriscarem e brincarem na rua, faça sol, chuva ou neve. 

2 – Pais superprotetores e “o terrorismo do Não”

Obviamente que a falta de equilíbrio na relação trabalho vs casa não explica tudo. A verdade é que, embora Portugal seja o 3º país mais seguro do mundo, e o 1º na comunidade europeia,  os pais do século XXI parecem ter criado a ideia errada, porventura através do que veem e leem na comunicação social (que geralmente prefere dar “más notícias”), que as crianças já não estão seguras a brincar na rua e, com medo dos que lhes possa acontecer, adotam uma postura de superproteção desnecessária e prejudicial ao desenvolvimento dos filhos, através daquilo a que o professor da FMH Carlos Neto apelida do “Terrorismo do Não”.  

Isto tem contribuído para que, não só o número de horas que as crianças brincam na rua e ao ar livre diminuia drasticamente, como a própria liberdade que têm no dia-a-dia, por exemplo, no percurso casa-escola também (cada vez menos crianças ou adolescentes vão a pé ou de bicicleta para a escola ou para apanhar os transportes públicos). 

Ao darem-lhes cada vez menos liberdade e autonomia, protegendo-as excessivamente dos supostos perigos, os pais contribuem para “criar crianças totós de uma imaturidade inacreditável”, como afirmou Carlos Neto, ao Observador, em 2015.  Assim é fundamental estimular o enfrentar do risco, na sua essência mais pura, o que irá ajudar a criança a criar maior robustez interna, mobilidade, autonomia e capacidade para lidar com a frustração e o tédio, o que é algo que, nos dias de hoje, é cada vez mais um desafio para as novas gerações, demasiado habituadas ao estímulos artificiais e digitais constantes. 

3 – Escolas que criam zonas proibidas e se esquecem da importância de brincar sem restrições

Mas é justo dizer que não são apenas os pais e o estado que têm de assumir responsabilidades pela falta de tempo que as crianças dos dias de hoje passam ao ar livre: também as escolas têm de assumir a sua quota-parte de responsabilidade (afinal é lá que muitas crianças e adolescentes passam parte do seu dia).  

A verdade é que, apesar de 80% dos professores – de acordo com o relatório Playtime Matters, publicado em 2019 pela Samble –  afirmarem que as crianças deviam ter mais tempo para a brincar ao ar livre, muitas vezes as escolas utilizam, devido à falta de pessoal, utilizam políticas inversas. Existe ainda uma imaturidade a nível da literacia motora, que compromete o bem-estar físico e psicológico, uma vez que, na maioria dos casos, a própria escola também não é promotora de espaços exteriores estimulantes para as crianças subirem árvores, escalarem, pularem, criando muitas vezes restrições e zonas que não podem ser exploradas pelos alunos.

Assim, é crucial que, cada vez mais, os pais e as escolas dêem liberdade e criem as condições para as crianças brincarem de forma não-estruturada, e não apenas em atividades extracurriculares, que apesar de relevantes não substituem a importância de permitir à criança descobrir e explorar o mundo à sua volta de forma livre. Como explicou a fundadora do Movimento Bloom Mónica Franco ao Jornal Público, isto é crucial pois dá uma oportunidade à criança de “testar os seus limites, de resolver os seus problemas, conflitos e de ultrapassar as suas limitações” contribuindo assim para o desenvolvimento das chamadas soft skills, para além de poder contribuir para melhor performances escolares, ao fomentar a “concentração, criatividade e imaginação”.

No entanto, a boa notícia é que há vários projetos a crescer em Portugal para mudar este paradigma de sedentarismo das crianças portuguesas. É o caso da Escola Lá Fora e a Tribo Terra, ambos baseados no conceito de Forest School, que nasceu na Dinamarca, que pretende potenciar a educação ao ar livre e a exploração e contacto com a natureza. 

Workshop Comunicação Eficaz

4 – Crianças “de agenda” que vivem como os adultos

Atualmente vemos muitas “crianças de agenda” – agendas essas impostas em muitos casos pelos pais e consequência também da elevada carga horária (e de TPCs) das escolas – que têm excessivas responsabilidades, demasiado cedo, com uma vida estruturada e pouco espaço para brincar.

Ora, será saudável entrar no mundo da “falta de tempo” tão precocemente? A maioria de nós concordará que não, mas a verdade é que as ações dos pais e também das próprias escolas (ainda muito formatadas para o ensino expositivo, onde a skill mais trabalhada continua a ser o “marranço”) contribuem para que as crianças entrem cada vez mais cedo nesta realidade.

Assim é crucial que haja uma mudança, para que escolas e pais deem oportunidades à criança de participar e interagir nas decisões e usem parte do seu tempo para brincar ao ar livre com elas, permitindo-lhes conectarem-se, contemplarem e confrontarem-se com a natureza. É de uma enorme importância para o desenvolvimento das crianças, fomentar-se atividades ao ar livre que promovam a relação e  contacto com o corpo para que haja simultaneamente uma regulação emocional e um nível de confiança e interação com os outros, que potenciem o desenvolvimento das competências cognitivas e de gestão das emoções.

E como ainda não há uma vacina para o equilíbrio físico e emocional, temos de alertar e intervir em conjunto com as escolas e as famílias no sentido de minimizar estes riscos e refletirmos sobre como as crianças estão a crescer e a viver na atualidade.

É também essencial estimular o potencial artístico da criança, ao nível das expressões (dramática, artes plásticas, música) e da educação física, de forma a trabalhar a memória muscular, a criatividade, o estímulo e a curiosidade.  

5 – Uma questão de mentalidade: Será que continuamos a pensar como Descartes?

A ideia Cartesiana de que o funcionamento do corpo e do cérebro estão separados, é algo que  continua a ser muito alimentado pela nossa sociedade, que tem dificuldade em ver o ser humano com uma visão holística e interdependente, ou seja, em que o lado físico afeta o lado cerebral e vice-versa.

Ora, talvez isto possa ajudar a explicar o porquê de muitos pais preocuparem-se tanto quando os filhos esfolam os joelhos, sobem às árvores ou são muito traquinas na escola, quando na verdade, estes são indicadores de crianças saudáveis, essenciais para o conhecimento dos seus próprios limites, para uma maior capacidade de resolver problemas e desenvolvimento de empatia e pensamento crítico. Na verdade, é quando as crianças são excessivamente quietas e sossegadas, que poderá existir motivo de preocupação.

Assim, este medo injustificado por parte dos pais, aliado à falta de tempo para estarem com os filhos e das crianças para brincarem, tanto na escola, como fora dela, faz com que os miúdos vivam dentro de uma bolha de proteção, longe do risco, o que traz enormes riscos para o desenvolvimento da criança.

Ao contrário do que muitos pais pensam, a aventura, o explorar novos sítios, novas brincadeiras,  o risco e o perigo são cruciais para o desenvolvimento da autonomia ao longo da infância (e terão também um enorme impacto na vida adulta), visto que, quanto mais as crianças arriscam, mais seguras e confiantes ficam de que são capazes de superar as dificuldades. 

Como diria Oscar Wilde: “A vantagem de brincar com o fogo é que se aprende a não se queimar”… assim se não for dado à criança espaço para explorar e arriscar, esta não terá a  autonomia nem confiança para se estruturar enquanto ser e irá internalizar os medos e angústias que os pais lhe transmitem, transportando-os para a vida adulta.

É por isso crucial, por um lado, os pais aumentarem o tempo que passam com os filhos (porque isso significa mais tempo para eles brincarem), e também que as escolas invistam em criar condições para que estas dimensões se possam desenvolver. Só assim podemos evitar que se criem crianças imaturas com uma dificuldade enorme em se adaptarem ao mundo e à incerteza que a vida adulta acarreta. 

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