Algumas pessoas que recebo nas consultas chegam em sofrimento, por vezes sem “motivo aparente” ou sem conseguirem identificar uma causa. Vêm com uma enorme vontade de mudar mas, por vezes, com resistência em analisar o passado. Referem que o que importa é o que está para vir e que o passado ficou lá atrás, é um assunto encerrado. “Para quê mexer no que não pode ser alterado?”, oiço muitas vezes
Para Freud a melhor explicação para a doença psicológica, seria encontrada seguindo os sintomas até a sua origem na infância, concebendo que “a criança é o pai do homem” e a verdade é que muitas situações de sofrimento têm raízes na infância. Os acontecimentos e as relações iniciais da nossa vida influenciam a forma como nos sentimos e relacionamos com o mundo na adolescência e idade adulta, influenciando os nossos pensamentos, ações, medos, dúvidas e fantasias.
Nós, seres humanos, – ao contrário de outras espécies – somos durante muitos anos dependentes do cuidado físico dos adultos para sobreviver. Durante os primeiros anos da nossa vida, estabelecemos vínculos emocionais fortes e prolongados com os nossos cuidadores, que são influenciados pela cultura onde vivemos, pelo país e pela época. Uma vez que dependemos destes para sobreviver, tudo fazemos para garantir a preservação deste vínculo, utilizando para tal, as estratégias de sobrevivência psicológica que temos ao nosso dispor, em cada fase do desenvolvimento.
Ao longo do desenvolvimento, tanto as características subjectivas da criança como dos seus cuidadores estão em jogo. À medida que crescemos, vamos adquirindo capacidades de autonomia física e, salvo no caso de patologia graves, acabamos por atingir uma autonomia física quase completa. Seria de esperar que o mesmo pudesse acontecer psicologicamente, podendo levar-nos a pensar que a partir de certo momento das nossas vidas as relações com os outros dependem exclusivamente das nossas escolhas: “afinal vivo sozinho, sou independente, sou eu é que decido o que quero ou não fazer e de que forma me vou relacionar com os outros”.
Contudo, na realidade, isto não é assim tão linear, porque as experiências emocionais dos nossos primeiros anos de vida nunca desaparecem.
Primeiros anos de vida: o que do nosso passado permanece no presente e futuro
É então, no contexto relacional, através das conexões mútuas e complexas com os cuidadores que vamos construindo a experiência que temos de nós próprios. Nesta experiência emocional inicial, vamos criando um “mapa” de princípios orientadores interiores, para a forma como nos vemos e nos relacionamos connosco, com os outros e com o mundo à nossa volta, ao longo da vida.
Este “mapa”, que fornece os princípios organizadores ou convicções emocionais, muitas vezes inconscientes, funciona de forma automática e decorre das conclusões emocionais que vamos retirando, do ambiente emocional em que crescemos, sendo que, muitas delas, formam-se mesmo antes da criança dizer as primeiras palavras.
Existem múltiplos factores que podem interferir nesta experiência relacional e o intuito de os identificar, não é procurar culpados ou apontar dedos às figuras parentais, mas sim reconhecer o papel que desempenham na estruturação da personalidade e encontrar uma compreensão que permita aceder e elaborar as situações que provocaram “marcas emocionais” que acabam por ter impactos negativos na vida.
Os cuidados que recebemos dos nossos primeiros cuidadores são factores essenciais para a estruturação psíquica e aquisição de capacidades de regulação afetiva, capacidade de reflexão e autonomia. Em contrapartida, as vivências traumáticas e falhas graves nas relações precoces podem interromper ou alterar o curso de desenvolvimento saudável, criando uma dificuldade em confiar nos outros e uma diminuição de recursos psicológicos. Com capacidade diminuída para elaborar as experiências, tornamo-nos mais vulneráveis ao sofrimento psicológico, existindo evidências de que crianças expostas a traumas terão, na vida adulta, um maior risco de desenvolverem condições clínicas diversas.
A experiência emocional que a criança tem na relação com os seus cuidadores determina as convicções que desenvolve. Por exemplo, uma pessoa pode sentir, porque foi essa a sua experiência relacional, que se se expressar sobre o que sente, tendo ideias e opiniões diferentes dos cuidadores, estas serão desvalorizadas, sendo encaradas com sarcasmo e como sendo ridículas, o que pode levá-la a sentir que o melhor é nunca mostrar o que sente. Isto significa que a criança vai retirando inferências emocionais da experiência intersubjetiva na sua família de origem.
O caso de Leonard, que conta a sua história no documentário Human é um exemplo extremo disso mesmo: o jovem americano, cresceu ‘habituado’ a ser constantemente agredido pelo padrasto, que lhe dizia que aquela violência lhe doía mais a ele do que a Leonard, que só lhe batia porque o amava. E qual foi a consequência de ter vivido estas experiência na infância e adolescência? Leonard, até bastante tarde na sua vida – já depois de ser preso e condenado a prisão perpétua – achava que o amor implicava violência e era através dela que tentava perceber se alguém o amava. Nas palavras de Leonard:
“I measured love by how much pain someone would take from me – citação do documentário Humans, de Yann Arthus-Bertrand”
Este exemplo, embora se trate de um caso extremo, demonstra-nos, que os princípios que os cuidadores nos “passam” através do seu comportamento serão o modelo de relação que será interiorizado. É com base nesta relação inicial que construímos as nossas estratégias de regulação do afeto e comportamento, desenvolvendo convicções sobre a forma como nos devemos relacionar com os outros.
Por exemplo, o leitor pode ter a necessidade de se adaptar às necessidades dos outros, estados de ânimo e expectativas para manter o vínculo afectivo. No caso de Leonard, tendo em conta a relação que teve com seu padrasto, desenvolveu a crença de que a violência não só fazia parte de qualquer relacionamento onde existisse amor, como era essencial para perceber se alguém o amava.
É também através destas experiências que cada um de nós constrói uma imagem de si próprio, que pode ser positiva associada a um sentimento de valorização pessoal (e dos outros), se as prestação de cuidados pelos cuidadores respeitarem e satisfizerem adequadamente as nossas necessidades emocionais, quando somos crianças, valorizando-as e reconhecendo-as de forma empática e com amor. Ou pelo contrário, assentar numa imagem negativa de nós e dos outros, desenvolvendo pensamentos negativos: “nunca vou valer nada” “sou sempre uma carga” “sou alguém sem valor e sou um inútil”. Às vezes são frases que os pais literalmente dizem aos seus filhos – “Maria és terrível” “és um inútil” “és burro” – mas poderá também ser algo que é passado implicitamente por aquilo que eles não dizem ou não demonstram na relação – que pode ser caótica, traumática ou subtilmente confusa – e que a criança vai inferindo emocionalmente, à medida que tenta perceber quem é.
Os afectos decorrentes dessa experiência relacional numa fase precoce da vida, muitos deles inconscientes, e portanto não disponíveis para reflexão directa, continuam a aparecer subjacentes na forma de problemas repetitivos na adolescência e na vida adulta.
Algumas pessoas passam por situações traumáticas, umas mais “visíveis”, como maus tratos e abusos, outras por situações aparentemente “menos visíveis” mas não menos importantes. Algumas pessoas têm mais resiliência, ou seja, maior capacidade de lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas sem entrar em crise psicológica, por encontrarem soluções estratégicas para enfrentar e superar as adversidades. O que não significa que não fiquem “marcas emocionais” dessas vivências.
Assim, de que forma nos pode ser útil disponibilizarmos parte do nosso tempo para analisarmos, com olhos de ver, o nosso passado?
Não podemos alterar o passado, mas podemos alterar-nos, “arranjar-nos”, mas para isso é necessário olharmos e analisarmos mais de perto o impacto que os acontecimentos do passado têm no presente.
É aqui que a terapia psicanalítica pode ajudar, ao criar um ambiente emocional, no qual é possível explorar de forma segura as regiões do inconsciente que têm um enorme impacto em nós e às quais não conseguimos aceder sozinhos. Na psicanálise, existe um esforço conjunto para compreender tanto a atividade organizadora presente como a passada, visto que ambas estão ligadas e se influenciam mutuamente.
Mas este caminho nem sempre é fácil, visto que somos todos diferentes: há quem precise de alguns anos de terapia para conseguir falar sobre o seu passado e há quem não queira saber da sua história, o que não só impede de perceber o que do presente é determinado por esta, como impossibilita uma mudança mais profunda.
As próprias experiências relacionais dos cuidadores – sejam eles pais, tios ou avós – são também elas decorrentes das suas próprias relações com as suas figuras parentais. Assim, sabemos que os ‘pais’ dispostos a enfrentar lembranças dolorosas associadas às experiências traumáticas vivenciadas no passado e que são conscientes do risco de, devido ao seu passado, também eles reproduzirem comportamentos inadequados, são menos propensos a repetirem esses mesmos comportamentos, do que os pais que nunca enfrentaram essas experiências dolorosas.