Os corredores estão gélidos como o meu espírito está assombrado pela ausência de notícias. A película do real envolve-me de forma a que esta caminhada no soalho seja pesada, longa e ineficaz. Todas as latitudes do meu discernimento são preenchidas pela incerteza de um futuro. Porque é que tudo isto está a acontecer comigo?
Não tenho energia para me revoltar. Sou um mar de sargaço e resignação. Hoje a enfermeira Vânia cortou o meu presente e futuro como duas metades de laranja, apartadas de uma possibilidade de união:
O Célio tem que se habituar à ideia de não poder ter a sua vida de volta…
As palavras da terapeuta reverberam no meu consciente como um sismo nas mais baixas camadas do interior da Terra. De facto, é assim que me sinto: um pedaço de materiais desagregados e abandonados à sua própria sorte.
Costumo dizer que sou poeira cósmica que é guiada por Deus. “Onde está o Criador? Quem sou eu?”. Dou um grito surdo tão árido como o vento que varre a minha planície sem vida. Mas que merda! O meu olhar já não brilha; a minha língua arrasta-se como um pesado réptil que fora imprudente à refeição e agora compromete a sua agilidade.
Não atiro, contudo, a responsabilidade desta atualização de estádios – esta variação entre o moribundo e a invalidez – à genética ou ao trauma. Eu sou responsável pelo meu estado atual. Não cuido da minha saúde mental. Perco peso para a minha atividade profissional (neste momento, convém dizer que sou judoca de alta competição) violentamente. Sou desorganizado. Não articulo as minhas prioridades. Sou negligente. Agora, registou-se na minha alma um momento de paragem obrigatória em que mergulho em toda a minha podridão para aí morrer. Será que vou ser capaz de me ressuscitar?
A agonia familiar. A impotência. As vértebras na carne magra da minha mãe; as olheiras do meu pai que se lhe arrastam pelos joelhos… A família está a sofrer a minha partitura. Compartilha comigo o sentimento de que nada está certo! Agora deito-me. Surpreendentemente, sinto-me aliviado. Sustentar o meu corpo é desafiante o bastante para a gravidade ser reconhecida como um pesado fardo.
Ainda não tenho diagnóstico. Tudo o que sei é que tenho a mente confusa, solta. Anarquia de vozes. Quando olho os utentes do hospital imagino-me a degolá-los: retribuir a sua candura e aliviar o seu sofrimento com atos malévolos com um zelo e requinte de malvadez. Será que eliminá-los é uma solução para me anular? Vazio. Estou gelado.
Navego num inexorável oceano que me fragmenta e espartilha numa transmutação de verdade. Sou uma falácia exótica e negra que na verossimilhança da existência perscruta o universo numa dramática encenação de vida:
Negro. Adoptado. Bairrista. Homossexual. E agora? Doente mental. Bem, parece que tenho a caderneta completa.
Ah, como me ardem os olhos de curiosidade. Como o investimento no nada se sustenta como a opção mais válida para o reconhecimento de que tudo o que existe se comprime no quarto contíguo ao frágil ensaio estagiário do Ocultismo. O Misticismo que me entretém bate-me de uma só vez pela frente e assassina quaisquer perspetivas. Nesta alienação atrevo-me para além dos recônditos e espaços da sanidade.
Não cuidei da minha saúde mental. Não prezei ou assegurei os meus mecanismos de comando; não fiz a revisão periódica. Agora? Agora, choro sangue.
É assim que me queres ver? Cabeça baixa, olhos pouco altivos e ombros que se assemelham a lágrimas. A dor lancina e não vou adiar mais esta insónia do devir. Tenho sono. Vou ser embalado nesta verdade que se verifica como um anúncio ao crepúsculo que enleva a promiscuidade do meu pensamento. Salto de sonho em sonho esperançoso de aí encontrar alívio e redenção.
Este artigo remonta ao ano de 2017, ano durante o qual Célio Dias tomou conhecimento que sofria de esquizofrenia. Atualmente a doença do Célio está controlada e o Célio faz uma vida normal.
Ser vulnerável é ser humano e ser humano é ser vulnerável. Ajuda-nos a mudar mentalidades: partilha a tua história ou experiência (de forma anónima ou dando a cara) enviando-nos um email para sinceramente@partilhamente.pt
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