“Somos aquilo que comemos”: Verdade ou mito?

Apesar desta ser uma expressão que ouvimos recorrentemente, a verdade é que já existe há mais de 2500 anos, e foi formada por Hipócrates, o pai da medicina. 

Desde sempre que os nossos hábitos alimentares estão na origem de muitas das doenças da nossa civilização, assim como fazem parte do processo de cura. Esta é uma responsabilidade do ser humano, quer a nível das escolhas mais ou menos conscientes e preventivas, no que diz respeito à sustentabilidade do nosso planeta, quer como consequência de patologias do foro psíquico. 

Hipócrates acrescentava ainda “que o alimento seja o vosso primeiro medicamento”, alertando para a reflexão sobre o impacto que a alimentação tem no nosso bem-estar e qualidade de vida. Por outro lado, também podemos questionar: “será que somos aquilo que comemos ou comemos aquilo que somos?”, por forma a traçar a linha que separa o normal do patológico. 

Ora vejamos

Quem nunca devorou um pacote de batatas fritas por estar ansioso para um exame importante? Ou encontrou consolo num pacote de pipocas, tabletes de chocolate ou pizzas enquanto via aquele filme romântico depois do fim de um relacionamento?

É certo que todos nós temos hábitos alimentares distintos, sendo normal que em situações de maior stress, em que nos encontramos em contextos de maior pressão e/ou sofrimento, tenhamos uma propensão a quase não comer nada ou um maior desejo de ingerir um certo grupo de alimentos, como doces, salgados ou refrigerantes.

Contudo, o expectável é que, ultrapassadas as situações adversas da nossa vida, voltemos à nossa rotina alimentar. Se por outro lado, durante um período a médio/longo prazo, continuarmos com oscilações alimentares de “8 ou 80”, ou seja, comermos muito pouco ou demasiado, contarmos rigorosamente as calorias ou formos, de forma constante e intransigente, críticos do nosso corpo, é provável que estejamos a desenvolver uma perturbação alimentar.

Assim, a comida que devia fazer parte da nossa existência como aliada e “melhor amiga”, aquela que nos nutre e nos permite viver saudavelmente, passa a ser a nossa maior inimiga, perseguindo-nos constantemente e tornando-se na dimensão que mais tempo ocupa a nossa vida, num sentido aditivo e patológico. 

Segundo a OPP, as perturbações alimentares dizem respeito a comportamentos de padrões extremos, isto é, deixamos de conseguir controlar os nossos pensamentos, que constantemente são direccionados para a questão alimentar, tendo uma enorme dificuldade em expressar o nosso sofrimento e em ultrapassá-lo. Muitas vezes, usamos a comida como projeção do sofrimento que, consciente ou inconscientemente, estamos a viver. 

Podemos, por exemplo, deixar de comer, ainda que estejamos esfomeados ou, pelo contrário, ingerir compulsivamente tudo o que nos aparece à frente, mesmo que não tenhamos fome. Noutros casos tomamos decisões que condicionam o nosso bem-estar e daqueles que nos rodeiam, como por exemplo, deixar de ir jantar com os nossos amigos ou familiares, para não sofrerem a pressão de ter de comer determinado alimento mais calórico, como uma sobremesa. 

A ideia de corpo ideal, a obesidade e as dependências: problemáticas do foro alimentar

De um modo geral, quando falamos de perturbações alimentares, como a bulimia, a anorexia e as compulsões alimentares, chegamos à conclusão de que todas têm, pelo menos, três fatores em comum: a constante inquietação com o tema da alimentação, a preocupação extrema com o peso e com a percepção da imagem corporal. 

A relação entre os media (e ainda mais das revistas cor de rosa) e a imagem corporal gera, de alguma forma, pressão nas pessoas para que atinjam o ideal do “corpo perfeito”, sem a típica “barriga de cerveja”, celulite e gordurinha a mais. Por outro lado, quando abrimos o Instagram somos bombardeados de fotografias com filtros que, na verdade, não correspondem ao “eu real”, mas à idealização de quem gostaríamos de ser. 

Muitas vezes, estas situações podem provocar em pessoas com uma auto-estima mais frágil, um processo de constante comparação que, em alguns casos, leva ao desenvolvimento de patologias do foro alimentar. Felizmente, hoje também já assistimos “ao outro lado da moeda”, em que alguns influencers partilham o seu testemunho nas redes sociais, desmistificando a ideia da existência de um corpo perfeito. Salientam que todos temos as nossas próprias características e que o essencial é trabalharmos no sentido de promover a nossa auto-estima e aceitar aquilo que somos, tendo sempre presente que o nosso corpo físico nos vai acompanhar até à morte e que, quanto mais bem resolvidos estivermos com ele, maior será o nosso bem-estar psicológico.

Em contrapartida, sendo Portugal o 4º país da OCDE com maiores taxas de obesidade da Europa, também assistimos a outro fenómeno paralelo promotor de várias doenças, tanto cardiovasculares, como psicopatológicas. Vejamos o seguinte cenário:

Imagine que joga videojogos mais de 8 horas por dia e que se irrita sucessivamente, cada vez que perde um jogo. Enquanto joga, ingere todo o tipo de carboidratos simples (como doces, salgados, refrigerantes, etc.), que podem reduzir temporariamente o seu stress, uma vez que encorajam a produção de serotonina, hormona que tem um efeito positivo sobre o humor

Estas e outros cenários semelhantes vão ao encontro dos resultados de alguns estudos que demonstram que, em situações de maior stress e ansiedade, o ser humano tende a regular as suas emoções através do consumo de alimentos. Por sua vez, o stress conduz os indivíduos a comerem demais, especialmente “alimentos de consolo”, ricos em energia, gorduras e açúcares. Este tipo de ingestão alimentar é também conhecido como “fome emocional”.  

Assim, fazendo “a ponte” com o exemplo acima, cada vez que perde um jogo, tenderá, caso sofra de distúrbios alimentares, a compensar a sua perda com a procura de apoio emocional e conforto através da comida. Como consequência, é provável que estejamos não só perante uma problemática de dependência na Internet, como também de um caso de obesidade. 

É assim fundamental reforçar a importância de se ter atenção para o facto de que uma patologia nunca vem só, e que teme que muitas vezes esta não é a verdadeira causa do problema, mas mais uma consequência provocada por outros problemas já existentes, que ficam ‘camuflados’’ por esta ingestão excessiva de alimentos.