Conta uma lenda Zen que um rei, apercebendo-se de que os habitantes da cidade se tinham tornado auto-indulgentes, instalados e pouco gratos, decidiu ensinar ao seu povo uma lição.
Colocou um enorme rochedo a tapar a entrada da cidade e ficou à espreita.
Durante vários dias assistiu, com desilusão crescente, a várias pessoas que chegavam, e perante o obstáculo, desistiam. Alguns tentavam brevemente resolver a questão, mas o rochedo era grande e não se movia, por isso desistiam ao fim de pouco tempo. Muitos queixavam-se e sentiam-se alvos de injustiça.
Alguns dias depois, um camponês aproximou-se do rochedo, contemplou-o durante algum tempo e foi à floresta buscar um ramo que pudesse usar como alavanca para mover o obstáculo. Ao fim de bastante esforço e persistência, conseguiu mover o rochedo. Debaixo dele encontrou um saco que o rei lá tinha deixado, com moedas de ouro e um recado:
O obstáculo que encontras no caminho torna-se o caminho. Nunca te esqueças: dentro de cada obstáculo há uma oportunidade para melhorarmos a nossa vida.
Segundo Ryan Holiday, autor do livro “The obstacle is the way”, transformar os obstáculos em caminhos é uma disciplina que se desenvolve em 3 passos: percepção, acção e vontade.
A disciplina da Percepção
Os obstáculos podem ser físicos (idade, estatura, distância, dinheiro, género, cor) ou mentais (medo, incerteza, preconceito, insegurança). Podemos duvidar de nós próprios, sentir que não nos levam a sério, ou que a lei nos restringe. Podemos ter um colega de trabalho que nos complica a vida, ou podemos até ficar sem trabalho durante uma pandemia.
A percepção é a maneira como olhamos para o que acontece, e é também o que decidimos que os acontecimentos vão significar para nós. Através do treino da percepção, podemos ver as coisas como realmente são, sem juízos de valor, ou seja, sem nos deixarmos influenciar por aquilo que gostaríamos que fossem. Podemos controlar as emoções, filtrar os preconceitos, as expectativas e o medo. Podemos ser nós a escolher de que maneira é que os acontecimentos nos afetam. Podemos decidir se nos deixamos quebrar ou se resistimos. Podemos escolher focar a nossa atenção no que podemos mudar.
Encontrar a oportunidade dentro de um obstáculo é um processo que exige treino. Antes de mais, precisamos de saber que, independentemente de tudo o que aconteça, há um espaço que é nosso e que os outros nunca poderão invadir: os nossos pensamentos, aquilo em que acreditamos, as nossas reacções.
O treino da percepção ajuda-nos a distinguir os acontecimentos reais das histórias que contamos a nós próprios sobre eles. Para isso, há que praticar a objectividade, controlar as emoções e alterar a perspectiva. A maneira como olhamos para o obstáculo pode fazer com que este se torne mais ameaçador (“submeti o relatório com um erro, nunca serei promovido”) ou ajudar a enquadrá-lo para que se torne uma oportunidade (“o próximo relatório será melhor; vou reservar mais tempo para rever o próximo relatório”; “quando receber relatórios de outros vou ser compreensivo com eventuais erros”).
Depende de mim?
Uma parte importante do treino da percepção é a resposta a esta pergunta. No que depende de mim, posso fazer toda a diferença. Posso estudar, treinar, trabalhar, preparar, fazer tudo o que está ao meu alcance para influenciar o resultado, para mudar as circunstâncias.
Em tudo o que não depende de mim, não tenho margem de manobra. Posso apenas escolher mudar aquilo que depende de mim.
Não recebi um apoio para o meu projecto? Não posso mudar esse facto. Mas posso melhorar a candidatura para o próximo pedido de apoio? Posso.
Quando treinamos a percepção, conseguimos ver o mundo como ele é, os obstáculos como eles são. E a partir desse momento, podemos escolher. Podemos agir. E agiremos em função da nossa percepção.
A disciplina da acção
A ação certa e eficaz exige persistência e flexibilidade, coragem e deliberação. Para que os obstáculos se tornem o caminho, não basta agir com urgência desajeitada, é preciso agir eficazmente, passo a passo, na direção do nosso objetivo.
A ação é um instinto inato. Quando algo importante acontece e é preciso agir, não pensamos, não nos queixamos, não discutimos; agimos simplesmente. Mas no dia-a-dia, perdemos o contacto com essa nossa capacidade inata. Podemos até ter consciência dos problemas e de eventuais soluções, mas adiamos, procrastinamos, ou esperamos que alguém resolva os problemas por nós, ou até que eles se resolvam a si próprios.
Quando os prazos não estão lá para terem que ser cumpridos, corremos o risco de adiar a nossa própria vida, como diz Tim Urban, na sua divertida mas também arrepiante palestra.
Mais uma vez, agir é uma escolha. Podemos esperar que alguém nos salve, fingir que nada aconteceu, podemos até esconder-nos debaixo de todas as razões que nos levam a não agir, a ver séries, a deslizar os dedos nos ecrãs até adormecermos. Ou podemos agir. Como diz Ryan Holiday, podemos agir com energia, persistência, deliberação, pragmatismo, visão estratégica e criatividade. Sem pressa, sem preocupação, sem desespero, sem procurar atalhos.
Para ser grande, sê inteiro
Se está decidido que vamos agir, façamo-lo bem. Independentemente da tarefa ou missão que temos pela frente, podemos desempenhá-la com dedicação, qualidade e consistência. Lavar a loiça, limpar o chão, escrever um artigo ou ir ao ginásio. Se escolhemos agir, estejamos inteiros nessa escolha. A investigação mostra que somos mais felizes quando vivemos por inteiro. E já Ricardo Reis o dizia:
Para ser grande, sê inteiro; nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Para sermos inteiros, é bom sabermos usar bem a nossa energia. Podemos canalizar aquilo que sentimos perante a dificuldade e usá-lo como combustível para transformar os obstáculos em oportunidades. Chegar a casa depois de um dia difícil no escritório e planear as próximas férias em família, chegar no dia seguinte ao trabalho com energia, fazer saber sem palavras que estamos a trabalhar para o nosso sonho, fazer saber que somos imparáveis.
Faz parte da escolha de agir sabermos que a ação pode não resultar. Que o plano pode não funcionar, que o obstáculo pode não se transformar desta vez. E nessa altura há que treinar a vontade.
A disciplina da vontade
Nick Vujicic, na sua palestra inspiradora, confessa que não recebeu um milagre, mas que percebeu, e até já sentiu, que pode ser um milagre para outros.
A vontade é o nosso poder pessoal, que não cede perante as exigências do mundo exterior. Perante uma situação em que a acção não parece eficaz, por vezes nem sequer parece possível, podemos escolher transformá-la numa experiência de aprendizagem, de humildade, de aceitação, de gratidão até, e de sentido.
Neste treino da vontade temos que estar preparados para as dificuldades que se seguem, para aceitar as coisas que não podemos mudar, para perseverar (não apenas persistir na transformação do primeiro obstáculo, mas continuar a perseverar transformando todos os obstáculos em oportunidades que nos conduzem ao nosso destino), para aceitar aquilo que acontece e para recomeçar. A cada momento.
Estamos vivos. E a vida traz dificuldades e obstáculos. Podemos ignorá-los, lutar contra eles ou tentar transformá-los em oportunidades. Podemos ser invencíveis, muitas vezes graças à nossa capacidade de aceitar o que acontece, de encontrarmos aquilo de que somos feitos.
No filme Invictus, vemos Mandela na prisão, enquanto ouvimos o poema de William E. Henley. I am the master of my faith. I am the captain of my soul.
Memento Mori
Vamos morrer. Todos vamos morrer, mas podemos escolher como queremos passar o nosso tempo enquanto estamos a viver na Terra.