Trigger warning | Partes do conteúdo deste artigo podem ferir a suscetibilidade dos leitores mais sensíveis
Quando se escreve a impressão da película do ser humano no outro, ou seja, quando se contam histórias – tecido de evolução -, existe sempre a tendência para o exagero: a verdade causa horror.
No momento em que lês estas linhas, convido-te a puxar uma cadeira, com alguma destreza de alma. Não te peço, nem ouvirás dos meus lábios salientes irromper tal apelo: “coloca-te nos meus sapatos” – este pedido é de saco roto, nulo e desprovido de sentido. Muito se fala em empatia como a capacidade de nos colocarmos numa posição em que entendemos o sofrimento alheio. Tamanho disparate! É mais fácil saltar até à Lua do que fazer este movimento quântico energético, na medida em que todo o ser humano tem uma percepção diferente de cada fascículo de realidade.
A compaixão, por outro lado, é um movimento de maior amplitude porque implica acreditar que o outro que pensa e reflete, que enquanto observador de si mesmo, tem todas as ferramentas disponíveis para se fazer valer a todo o momento.
Convido-te, se possível, na sequência da informação que te chega numa jactância física e virtual, a deixares-te absorver lentamente por este tecido escrito com as minhas mãos cheias de desporto e os teus olhos apaixonados, curiosos.
Na noite que contamina o meu enredo, estou na cama: errante em pensamento, errático em posição. No horizonte apenas se verifica um abismo entre a minha identidade física, ou seja, o meu corpo e a sua oposição em rifte, a dispersão energética no universo.
Consigo-me ver como uma estrela que inspira o caminho de todos que tal como eu lutam pela sua sobrevivência. Espero que esta minha tentativa de “suicídio” te traga lucidez ao ponto de tu não seres como eu.
Já não tenho forças para continuar a lutar: vozes constantes que anulam a minha esperança: petrifica-se a minha capacidade de me amar. Nesta noite sou menos tristeza sendo mais triste. Sou menos depressão sendo mais depressivo.
Consegues entender do que te falo? Vês aquele pensamento de menino que é preto e que não merece ser inteligente? Percepcionas o comentário homofóbico e a caracterização do meu eu sendo branco por dentro? Consegues ver-me no crucifixo quando a sociedade me diz que por ser doente mental nela já não tenho espaço ou palavra?
Sinto o nervosismo a esvair-se de cada órgão como sangue, e a ser preenchido, gota a gota, com o desespero que a minha existência proporciona: a minha carne apenas sente um vazio que dilacera e perfura como uma faca de dois gumes. Matar-me é a única solução. Acabar com o sofrimento e não com a minha vida.
Não sou corajoso pois a coragem e o medo partilham da mesma raiz, mas a primeira é energia em movimento enquanto a segunda é energia em inércia; Pois bem, o meu corpo já não tem energia, já não tenho receio da morte. Também não sou cobarde pois tudo o que vivo é demasiado grande para o meu hábito mental.
Imagina um recipiente que está a transbordar e que tu continuas a depositar-lhe um conteúdo aquoso. Dir-lhe-ias: “És cobarde por não armazenar mais água?”. Penso que não. Sentirias compaixão pelo copo e pela decisão que ele toma ou alguém tomou no seu lugar? Assim, cada pensamento obsessivo que me desestrutura atualiza a minha incapacidade de continuar a sobreviver. Sobreviver é o que faço sempre e agora. Pese embora, não tenha esta habilidade, pelo menos por agora.
Assim, avanço e substancio a intenção em comportamento. Cubro a boca para dela não se descolar o mais pequeno ruído; coloco um saco plástico na cabeça como se ela me distinguisse como rei dos mortos; de seguida, amarro-me da melhor forma às pernas da cadeira. Debato-me com a morte durante algumas centésimas de segundo… Um, dois, três…. Um, dois, três… Exatamente duas tentativas depois, estou nos rudes lençóis, na cama, suado e a celebrar a morte do indivíduo que morreu.
Nesta noite morreu, sem data de regresso, um eu que é poesia do Outro Mundo, destacando um lirismo que cancela a vida. Nesta noite, sobrevive a resiliência e visto um fato de dignidade e uma maquilhagem de justiça, pinto os lábios com batom de celeridade.