No meu último artigo dei a conhecer um pouco a história de vida da família Sheff , tão bem retratada no filme “Beautiful Boy”. Hoje, deixo-vos a minha visão clínica sobre o mesmo.
Beautiful Boy: Um “Olhar” Clínico
Começo por analisar de forma sistematizada a trajetória de Nic no consumo de drogas, que acontece essencialmente a partir de um período crítico do desenvolvimento, que é a adolescência. Assim, tendo em conta a definição proposta por Coimbra de Matos – uma das maiores referências na área da saúde mental – no seu livro “Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica”, a adolescência é considerada um período fundamental de definição da identidade, onde é possível (ou não), que exista uma diferenciação, firmeza e consistência identitária por parte dos adolescentes.
Sendo uma etapa caracterizada pela procura de autonomia e independência, esta fase pode também ser vista pela óptica de oportunidade, inovação e criatividade que muitas vezes pode ser manifestada pela extravagância e expressão dos jovens, seja pelos textos que lêem, pelos artistas musicais que seguem, pela identidade que desenvolvem e forma como se vestem. Neste caso em particular, podemos verificar que Nic começou a mostrar um interesse precoce e invulgar por músicos e escritores como Kurt Cobain, William Burroughs, Charles Bukowski, Ernest Hemingway, e F. Scott Fitzgerald. O que é que todos estes nomes tinham em comum? Todos eles abusaram de substâncias como álcool e drogas. Segundo o pai, enquanto os miúdos da idade dele se entretinham a ver Star Wars e filmes da Disney, Nic preferia explorar as obras de Martin Scorsese, David Lynch ou Jean-Luc Godard.
Neste seguimento, o adolescente torna-se extremamente permeável ao mundo exterior, que funcionando como uma “esponja” que absorve tudo o que se encontra à sua volta, centrando-se em si, desinvestindo das relações com as figuras parentais e ligando-se a outras referências como, por exemplo, o grupo de pares. É neste grupo que existe uma partilha de angústias, de desejos e de experiências particularmente importantes para o desenvolvimento da construção da identidade do jovem.
Desta forma, para Coimbra de Matos é também reativada a problemática dos limites geracionais, em que se o jovem não realizar o processo da interiorização do interdito – ou seja, não for educado a estabelecer uma relação distinta com as figuras parentais daquela que estabelece com os amigos – poderá comprometer este processo. “Este caos inconsciente que se começa a formar no interior de Nic, pode ser explicado pela excessiva proximidade entre este e o seu pai. É o próprio que admite que a sua relação com NIC era excessivamente próxima, quando comparado com a dos outros pais e filhos: fumavam juntos, contavam histórias semelhantes e falavam de igual para igual, como se fossem amigos. Esta relação de excessiva proximidade fez com que não fosse criada uma fronteira, o que contribuiu para uma indefinição do papel da figura paterna, que neste caso era mais um ‘par’ para o adolescente. Neste caso, deu-se ao adolescente a ideia de que tudo é possível, não colocando limites, nem regras.
Tendo em conta o processo terapêutico com as famílias para as ajudar em situações de dependência, o caso da relação de Nic com o seu pai remete-nos para a falta de autoridade, para uma instabilidade que se observa nos vínculos da parentalidade e na incapacidade de renegociar com o filho, as funções de cada um no seio familiar. Tolerar e apoiar os sinais de ameaça ou de perda, motivando e estimulando novas experiências e aprendizagens, é o papel do adulto empático e encorajador, algo que o pai de Nic acaba por se esforçar por tentar ser. Contudo, é evidente que por vezes há um excesso e urgência de intervir e de querer controlar todas as decisões do filho, como o facto dele ir ou não para a faculdade. A sugestão que Coimbra de Matos faz para uma boa relação pai e filho, é a de que exista sempre um diálogo intergeracional.
Dentro desta linha de pensamento, 3 das características mais marcantes nos jovens, são:
1) Luta contra um dia-a-dia enfadonho, escasso de sonhos e projetos de vida. Podemos verificar este facto, com um exemplo muito claro no filme quando Nic refere que o consumo de drogas é uma forma de lidar com toda a monotonia e banalidade do dia-a-dia que não são suficientemente estimulantes para ele;
2) Expressar um determinado ideal, que se transmite em determinadas atividades sociais e culturais. Podemos observar isto, quando Nic recita Charles Bukowski durante uma aula da faculdade: “I changed jobs and cities, I hated holidays, babies, history, newspapers, museums, grandmothers, marriage, movies, spiders, garbagemen, english accents, Spain, France, Italy, walnuts and the color orange. Algebra angred me, opera sickened me, Charlie Chaplin was a fake and flowers were for pansies”. Segundo Nic, ele utiliza a metáfora de que este autor “o salvou várias vezes”, talvez pelo facto de ser um poema com uma carga emocional carregada de revolta, mas que por contraste aborda precisamente alguns dos prazeres da vida que muitos de nós procuramos, mas que são vistos de uma forma negativa pelo autor;
3) Socializar através da atividade desportiva, da música, teatro, entre outras práticas que despertam a aventura e implicam experiências novas. Neste filme Nic utiliza a escrita de forma catártica, processo que lhe permite trazer à consciência as emoções ou os sentimentos reprimidos no seu próprio inconsciente, fazendo com que seja capaz de se libertar das consequências ou dos problemas que o interiorizar desses sentimentos provocam.
Relacionando o objeto droga, este surge como um falso “colete à prova de balas” que o faz obter, ainda que temporariamente, o amparo perdido ou inalcançável, na tentativa de fazer desaparecer todo o sofrimento que o persegue, mas que só lhe traz gratificação momentânea. Há assim, uma certa tentativa de acesso a um mundo paralelo, em que os próprios são actores principais de uma história fictícia na qual desejariam viver para sempre. Quando regressam novamente ao mundo real, este voltar é melancólico, desinteressante, destituído de significado e difícil de suportar. Este processo é, na maioria das vezes contraditório, pois torna-se num lugar que ao mesmo tempo parece ser o seu refúgio, a sua casa. No caso de Nic, este referia que a droga o fazia sentir “melhor do que alguma vez esteve” e não sabia explicar porquê, mas que acabava por ser um labirinto verdadeiramente complexo e aparentemente sem saída.
Tipicamente, o princípio dos consumos acontece no coração da adolescência, numa fase de vida em que os jovens se encontram particularmente vulneráveis, por vezes com uma certa sensação de alienação, dispostos a aceitar algo que os faça sentirem-se melhores, camuflando assim o seu sofrimento de lidar com a realidade do seu mundo, tanto interno como externo.
Por norma, no que diz respeito às primeiras experiências com substâncias lícitas ou ilícitas, a maioria das pessoas pára na experimentação, como aconteceu com o pai de Nic. Por oposição, se essa experiência estiver associada a decepções, a lutos e a problemáticas pessoais, familiares ou sociais, como parece ser o caso de Nic, a probabilidade desse consumo prevalecer, tornando-se tóxico-dependente é maior, visto que o adolescente vê nesse consumo uma forma de anestesiar o sofrimento e de certa forma atingir uma espécie de estado nirvana, através do consumo de droga.
Intervenção Psicológica
Do ponto de vista da psicóloga e psicanalista Ana Marques Lito, o adicto olha muitas vezes para o consumo de drogas como o problema per si, quando este é uma forma de compensar outros problemas internos, que muitas vezes a própria pessoa desconhece que existem. Esta é uma das reflexões que o filme nos permite fazer, particularmente no momento em que Nic está no hospital e alguém lhe pergunta qual é o seu problema. Quando responde que é toxicodependente, a pessoa diz-lhe que não, que esse não era o seu problema, mas a forma como ele estava a lidar com o mesmo, camuflando e escondendo todas as angústias originadas pelo seu verdadeiro problema.
Este excerto do filme, remeteu-me automaticamente para um documentário que vi recentemente chamado “The Wisdom of Trauma”, em que o mundo das dependências também é abordado e onde o médico Gabor Maté refere que “o trauma não é aquilo que nos acontece, mas sim o que acontece dentro de nós, como consequência daquilo que nos acontece”, isto é, a droga é o meio que o sujeito utiliza para tentar colmatar a sua dor, relativa acontecimentos passados.
Podemos ainda pensar e reflectir sobre este tema através do conceito de Nós-Problemáticos, em que estes são como “novelos” que têm como base a experiência interna do sujeito, tanto no contexto individual, familiar, como social, através da construção emocional que cada um faz nos seus caminhos na vida. Ou seja, tal como acontece com um novelo, estes sujeitos têm literalmente várias encruzilhadas na sua história, circuncisando as mesmas numa determinada “bolha do tempo”. Esta história é tipicamente carregada de um enorme sofrimento psíquico, em que Nic mergulha num “buraco negro e patologia do vazio’, manifestando a sua constante insatisfação através do contínuo consumo de drogas”
Neste sentido, no que concerne à Intervenção Psicológica, esta tem-nos demonstrado que é possível auxiliar o tóxico-dependente e as suas famílias a encontrarem alternativas para lidar com o sofrimento acumulado, através de respostas menos imediatas, mas mais eficazes e saudáveis, como é o caso dos tratamentos psicoterapêuticos individuais, familiares e ou/de grupo, que permitam um espaço contentor de reflexões e partilha de angústias, onde os resultados e a profundidade da intervenção requerem tempo e, simultaneamente, uma mobilização de sinergias e de especificidade clínica.
É por isso que é essencial que exista um olhar clínico sobre as dimensões Indivíduo-Família-Sociedade no processo de “tornar-se tóxico-dependente” ou noutra qualquer dependência.